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O dia em que as comichões me atacaram pela retaguarda
Ainda faltavam duas horas e meia pra eu receber a resposta do Edgard sobre o horário da reunião daquela tarde. Tudo poderia acontecer. Meus passos desengonçados pela Avenida Paulista só não chamavam mais a atenção dos demais passantes porque as pessoas têm mais o que fazer. Observar um careca barbudo andando a esmo, no meio do mar de gente, não é um passatempo muito aprazível. Tanto poderia dar certo o projeto de edição do livro como não.

Em vez de ficar martirizando-me de ansiedade e reforçar a minha paranoia de olhar pro relógio de dois em dois minutos, resolvi curtir uma das atividades que mais aprecio: cinema! Não é todo mundo que pode dar-se ao luxo de pegar um cineminha em plena tarde de terça-feira. Grande coisa. Também não é todo mundo que, além de ser careca, ansioso e distraído, está sendo incomodado por um violento oxiúrus e, mesmo assim, acha que vai ter concentração pra assistir a um filme.

Resolver mais de um problema, ao mesmo tempo, dá uma sensação de alívio entusiástico. Eu poderia assistir a uma agradável película e, de quebra, coçar a minha parte íntima, no escurinho, sem passar vergonha em público. Um vexame a menos é igual a um trauma a menos pra minha coleção. Descarrego de lembranças indesejáveis no futuro. Não que eu esteja lá muito preocupado com o que pensam de mim, mas também não preciso chutar o pau da barraca. Preservar-se, de vez em quando, pode ser divertido.

A maioria daqueles estranhos nunca mais me veriam na vida e, os que me veriam, provavelmente, não se lembrariam de mim. Mesmo sabendo disso, sou um cara metido a normal. Evito ficar enfiando as mãos dentro da calça e sacolejando pra alegria de alguns e náusea de outros.

Por coincidência – ou majestosa sincronia do cosmos – lá estava eu, aproximando-me da esquina com a Rua Augusta. Nem as minhas comichões conseguiram tirar o meu contentamento por estar cada vez mais perto da minha segunda casa.

O Espaço Unibanco de cinema (acostumei-me a denominá-lo dessa forma, desde o fim dos anos noventa, e vou continuar assim o intitulando) é um dos raros locais de São Paulo que me dão a sensação de estar mandando às favas essa maníaca obsessão de cumprimento de horários e compromissos urgentes. Quase um oásis no meio desse hospício disfarçado de cidade.

Entrei pelo beco que dá acesso às duas salas menores – as minhas preferidas – e comprei um ingresso pro filme “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho. Na minha opinião, o melhor filme de 2013. Trinta e oito minutos até que era pouco pra esperar pela liberação da entrada à sala número quatro. Só mais dezenove espiadas no relógio, algumas requebradas pra esquerda e mais algumas pra direita pra sossegar o verme detestável, e logo estaria em pleno breu e, então, a área na qual metesse as minhas mãos só diria respeito a mim.

Olha só que loira gata! E desacompanhada! Se não fossem os invasores de nádegas, lá iria eu conversar com a beldade. Mas, hoje, não é o meu dia. Muito me darei por satisfeito se conseguir prestar atenção na tela e, é claro, se o Edgar ligar-me, mais tarde, com boas notícias sobre o livro. Ah, não! A loira não está vindo pra cá. Diga que não, por favor... Sim, ela está.

– Oi, essa é a fila pro “O som ao redor”?

– É sim, moça.

– Li boas críticas sobre esse filme. Estou com uma expectativa muito alta. – disse ela, com um sorriso convidativo.

Eu queria dizer que também estava com alta expectativa, não só em relação ao filme, como também quanto à sua presença, mas o que eu poderia dizer se a única coisa que me preocupava era não passar vergonha na frente de uma mulher bonita? Usava a técnica de entrelaçar os dedos, atrás da cabeça, pra controlar as mãos. Estava dando certo, porém a duras penas.

Meu posterior queimava, pegava fogo. Não conseguia pronunciar uma única palavra. Acho que ela começava a achar-me um idiota que não sabia o que estava fazendo lá, mas fui desmentido pelos seus olhos que reluziam. Ela parecia realmente ter gamado em mim.

– Acho que conheço você de algum lugar. Você não é escritor?

Ah, não! A última joça que eu queria numa conjuntura dessas era ser reconhecido. Quase que eu neguei, mas estava fragilizado o bastante pra conseguir incorporar um personagem.

– Sim, eu escrevo.

– Eu sabia! É você!

O guardinha se aproximou da corrente que bloqueava o acesso à sala de filme. A qualquer instante, a entrada seria liberada. Que circunstância pior haveria pro meu celular começar a berrar? Mas será o Benedito? Quem me ligaria numa hora dessas?

– Alô! Benedito? Quer dizer, Edgard?

– Por favor, poderia falar com o senhor Marcelo?

– Quem gostaria?

– Meu nome é Ângela, sou gerente do Banco (...).

– Oi, dona Ângela, agora não posso falar.

– Olá, Marcelo. Você foi selecionado por ter um perfil interessante pra um de nossos melhores produtos: um plano de capitalização!

– Dona Ângela, vou tomar isso como uma ofensa, pois acredito que só os songa-mongas fazem planos de capitalização.

– Imagina, senhor Marcelo! Você vai auferir magníficos rendimentos mensais e ainda tem a chance de ser sorteado pra um prêmio de seiscentos mil Reais!

– Por isso mesmo, dona Ângela, eu não participo de sorteios. Não gosto de ficar dependendo do fator sorte. E acho que esse produto deveria ser vendido numa casa lotérica e não num banco.

– Mas, Marcelo, o senhor não tem nada a perder. Se não for sorteado, pelo menos vai embolsar os juros.

Tenho uma dificuldade imensa em cortar conversas. Não gosto de ser indelicado.

– Dona Ângela, eu sei que os ganhos de um plano de capitalização são inferiores aos da poupança e, como se não bastasse o prejuízo financeiro, ainda existe o prejuízo moral. Vou ter que esconder de todo mundo que tenho um plano de capitalização, pois considero isso tão vexatório quanto estar com oxiúrus.

– Ahahahaha... Senhor Marcelo, sempre admirei o seu bom humor. Só de vê-lo entrando aqui no banco, eu caio na gargalhada.

– Não sei se isso é bom, dona Ângela.

– Isso é ótimo, senhor Marcelo! E você vai poder dizer a todos os seus amigos, sim, com muito orgulho, que fez um plano de capitalização com o Banco (...).

– Dona Ângela, se eu não costumo dizer em público que tenho frieira e micose, a senhora acha realmente que eu diria que tenho um plano de capitalização?

– Ahahahaha... Senhor Marcelo! Assim você me mata!

Ah, não. Eu pensei que essa havia sido a gota da água. Eu não queria matar a dona Ângela. Ou melhor... na verdade, até queria... no sentido literal, provavelmente, mas estava mais interessado em matar essa loirinha gata, que estava sorrindo pra mim, bem na minha frente, e que a dona Ângela não me deixava dar continuidade ao processo de abatimento.

Na minha mente, o único sentido de “matar” que me interessava era o de Michel Teló. Eu queria pegar e matar, no uso mais prazeroso da palavra. Mas já fazia uma coleção de estorvos: era o Edgard que não me ligava, o meu oxiúrus que coçava pra cacete, o filme que eu corria o risco de perder, o meu receio de que a loirinha estava quase desistindo de mim e, agora, mais essa!

A dona Ângela queria entrar no meio de tudo isso pra vender-me um maldito plano de capitalização. E que pretensão era aquela minha? Quem eu pensava que era pra querer matar alguém de prazer se era eu quem estava sendo morto por uma crudelíssima coceira no fiofó? Mas era justamente esse o problema: o problema de ser bombardeado por uma combinação tão bem estruturada de problemas, ao mesmo tempo. Os fatos adversos reuniram-se, combinaram, planejaram e estruturam toda uma rede de conspiração contra mim. E a dona Ângela era insistente...

– Senhor Marcelo, já que o senhor não quer desfrutar o privilégio de ter um excelente plano de capitalização do Banco (...), gostaria de falar sobre o nosso seguro de vida.

– Dona Ângela, eu não tenho filhos e sou solteiro.

– E daí, senhor Marcelo?

– Como e daí? Pra que eu vou querer um seguro de vida?

– Pro senhor mesmo. Se o senhor sofrer um acidente e ficar inválido, o senhor recebe o seguro de vida.

– Dona Ângela, se eu sofrer um acidente e ficar inválido, dou um tiro na minha cabeça.

(Silêncio)

– Senhor Marcelo, que triste ouvir isso de um moço tão jovem...

– Dona Ângela, eu já não sou mais tão jovem assim e, mesmo que fosse, o que adianta ser jovem e inválido?

Parece que consegui a proeza de fazer a dona Ângela dizer que o Banco (...) agradecia e que eu tivesse uma ótima tarde. E isso sem precisar ser estúpido. Bom... há controvérsias, eu sei, mas eu não perdi a classe. Isso nunca. Agora, finalmente, eu poderia conversar com a... Cadê a loirinha? Bom, quem sabe eu a encontre lá dentro da sala...

Estendi o meu ingresso pro homem de preto e postura ereta, de fisionomia exageradamente séria, que estava plantado na porta da sala quatro, alheio a toda comédia que ocorria bem do seu lado, e que só eu percebia. Naquela escuridão, era impossível identificar um cabelo loiro, por mais reluzente que fosse quando alvo de luzes advindas da iluminação da tela.

Bom pra mim. Assim não precisaria sentir-me o bunda-mole por considerar que não era uma ocasião propícia. E ainda eu poderia sentar bem no fundo, no cantinho, encostadinho na parede daquela sala de cinema pequena e vazia, como era previsível numa tarde de terça-feira.

Contradizendo o que eu dissera pra dona Ângela, agora, eu tinha dois filhos: o filme e o meu oxiúrus. E precisava dividir, igualmente, como um bom pai, a minha atenção entre os dois. Um pouquinho eu prestava atenção no filme e outro pouquinho no oxiúrus. Mas era pro oxiúrus que eu cantava a musiquinha:

– Ai, se eu te pego! Ai, ai, se eu te pego! Assim você me mata!

Na minha versão, só omitia a palavra “delícia”.

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)

A versão em áudio deste texto – transmitida pela Rádio WRA de Santo André – SP – e pela Rádio Além Fronteiras de Portugal – pode ser ouvida na subseção Crônicas para Rádio da Seção Rádios deste site.

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Ilustração de Nanci Penna

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